Domingo, 07 de Janeiro de 2001

Um dia destes escrevi um texto no qual observava a vida de cão. Porém, achei que o assunto não teria interesse para ocupar espaço de jornal e por isso ficou no arquivo do meu portátil. Contudo, sempre direi que a estória  tinha a ver com o acto eleitoral conectado este com a morte de um cão. Ou seja, fazem-se eleições - não está em causa para que orgãos sejam - na convicção de que as coisas hão-de melhorar.

 

Então, associava ao o acto eleitoral que decorria no país à morte de um cão que fora atropelado mortalmente, por certo já havia algum tempo e que ficara abandonado na berma da estrada, dentro de um vasto aglomerado populacional, onde entra, sai e passa muita gente, gente que vê e observa. E, ali diante a seus olhos jazia, sem que incomodasse alguém, aquele que fora um simpático e fiel amigo, como de resto são todos os cães.

 

Mas se aquela estória não tinha interesse para ocupar um espaço de jornal, talvez estas outras, não menos animalescas, possam mexer connosco, sobretudo convosco que tendes o poder de reformar as instituições deste país.

 

Há tempos uma jovem mãe, solteira, porventura coberta de dificuldades ou medo das gentes religiosas da sua terra, em desespero atirou um recém-nascido, filho seu, para uma fossa, misturou um ser humano com a imundice. Mais tarde o crime foi descoberto.

 

Infelizmente não foi um acto isolado, porquanto actos destes constatamo-los frequentemente na imprensa. De resto esta semana tive ocasião de ler que uma outra jovem mãe também tinha atirado o seu filho, recém-nascido, para um contentor do lixo. Outras mais tementes vão colocar os neófitos à porta de um hospital ou no rebate de uma qualquer casa. Tornou-se, pois, uma prática para mães aflitas desfazerem-se dos seus rebentos.

 

Felizmente que os nossos jovens não sabem o que era a roda; mas porventura, tal como eu, já ouviram aos mais velhos, falar da roda. Todavia já tivemos oportunidade de ler textos que nos falam desses tempos negros. Talvez ainda exista por aí quem se lembre de histórias da roda dos enjeitados, daquela roda onde as mães, quiçá os seus amados e amantes, nem sempre gente do povo, ou talvez até quase sempre gente de extractos que não do povo,  iam depositar os seus filhos na hedionda roda. ´

 

Filhos de gente atolada em necessidades de amores furtivos, de ocasionais encontros, ou talvez não,  filhos nascidos de actos forçados porventura a coberto de cargos dados aos poderosos. Quaisquer que fossem as razões, quando assim acontecia, muito antes eram congeminados projectos em ordem a depositar o enjeitado em sítio onde ficassem ao cuidado de alguém.

 

Aqueles filhos eram levados na calada da noite, de rosto coberto com o negro xaile ou com o longo barrete de pastoreio enfiado cabeça abaixo, pela surdina da noite. Havia, pois, sempre quem sabia de um caminho ou atalho para local, quiçá seguro, onde depositados ficavam os enjeitados que de modo nenhum poderiam ficar expostos aos olhos dos demais, seria uma vergonha social e jamais alguém haveria de saber  da existência daquela criança.

 

Dito na linguagem do povo que tanto tem aspirado a melhor sorte, este tempo esta política está uma lástima. E têm razão. Alguém conhecerá para aí alguma reforma social, onde as jovens mães ou outras abandonadas à sua sorte possam deixar ao cuidado de alguém os indesejados filhos.

 

E essas outras crianças de mães honradas na sua fé, que vivem com meia dúzia de filhos atolados em lama até aos artelhos, debaixo de uma ponte? As misérias deste país estão, cada vez  mais, a vir ao de cima.

 

Não são, pois, só os cães que morrem atropelados e ficam desprezados putrificando na berma da estrada, os recém-nascidos também sofrem dos atropelos da inexistência de um serviço público a contento e por isso são atirados para as lixeiras. E é por falta de uma política de apoio social aos cidadãos que não só as crianças, é por tudo isto e muito mais que o povo se está borrifando para actos eleitorais.

 

Leiria, 21 Jan 2001



publicado por Leonel Pontes às 02:47
A participação cívica faz-se participando. Durante anos fi-lo com textos de opinião, os quais deram lugar à edição em livro "Intemporal(idades)" publicada em Novembro de 2008. Aproveito este espaço para continuar civicamente a dar expres
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