Lembro-me como se fosse coisa de hoje – os da minha e além geração, também, admito – dos pobres que ciclicamente batiam às portas a esmolar um prato de sopa, um pedaço de broa (pão, quem o vira que se rira, só em dia de festa!), um naco de toucinho já a amarelecer, um casaco virado e revirado; até uma simples pernoita entre palha de arribana eram dádivas bem-vindas. Pese embora o tempo, ainda vejo a cara dalguns e até os nomes me vêm à memória.
E, outros mais haviam que não só os do saco às costas calcorreando, de sola virgem e gretada, veredas e penhascos; pobres eram também aqueles para quem o salário acrescentado à colheita das leiras, não supriam as necessidades familiares, e por isso socorriam-se da sopa dos pobres onde as religiosas aí proviam pratada certa. O portão por onde passava, todos os dias pelo meio-dia, o pelotão da tripa míngua, felizmente, encerrou. Mas, ainda lá está, podre de velho.
Sob a bandeira de uma Primavera que tardava em desabrochar, os sonhos – falo dos meus - eram mais do que muitos. E, como dizia um amigo, “não é preciso que sobre, só é preciso é que chegue!”. Lá em casa a coisa ia chegando, tudo era tareado e talvez por isso não fomos clientes do Instituto. Então, pensava, um dia isto vai acabar e alicerçava certezas no adágio popular “não há mal que sempre dure”. A tal propósito dir-se-á agora “nem bem que nunca acabe!”. Os tempos são outros mas os pobres despontam como cogumelos.
E veja-se; hoje há quem durma junto à soleira embalados em retalhos de cartões, hoje vegeta-se e morre-se aos poucos – um flagelo sem adequado combate; bate aos olhos de todos -, hoje há quem baldeie contentores de lixo à procura… à procura de tudo. Procuram, até pelo emprego perdido. Hoje… hoje, a vida é … é qualquer coisa para o que não encontramos palavras.
Mas, muitos destes novos pobres são o resultado acabado de uma pobreza de espírito, maquiavelicamente, cultivada a pretexto de uma razão de ser, para estar. Por outro lado, ao que parece, há quem gira com canhenhos do passado e só por isso se compreende como “são escassos os testemunhos da pobreza - isto acontecia por alturas do século XVIII – posto que os pobres nem tão-pouco merecem referência nas crónicas da cidade “.
A concluir queria dizer uma outra coisa; todos merecem referências, sendo mesmo um dever de cidadania trazer à estampa textos aleivando chagas que grassam cá pela região, posto que, factos acontecem – a passar a raia do razoável - que mais não são do que o corolário de uma incomensurável pobreza, toda ela geradora de mais e mais pobreza
Leiria, 30.01.05
in intemporal(idades) | pag. 417 | 2008