Aos meus olhos era previsível - cá entre nós - um cenário de carência alimentar. E, por várias vezes, opinei sobre a questão, só digo o que vejo; evidências. Agora, reitero o que fora dito, tendo por base factos; não ficções. E, recordo que ainda não há muito tempo, existiam pelas aldeias – na minha por exemplo – os vendedores de leite porta-a-porta, gente que fazia a verdadeira economia familiar, amanhando terras que haviam de alimentar “vacas leiteiras” e outras rezes destinadas ao sustento familiar.
Coitadas das vacas, mugidas duas vezes ao dia, de mão grossa e calosa num vai-e-vem de teta acima, teta abaixo esguichando o precioso líquido – genuíno leite de vaca, puro como nenhum outro – leite recolhido em vasilha inox; desinfectada e areada a cinza – qual celorine – que de pronto era carregada à cabeça de uma qualquer Nazaré que a horas certas estava à porta dos fregueses fornecendo o gordo alimento, ainda quente. Ainda assim, tal quentura não dispensava, nem podia, fervura para extermínio de possíveis micróbios. Leite que era sustento para pequenos e graúdos, leite que dava pronta refeição, de manhã, pela tarde ou à noite. Qualquer bocadinho de broa ou pão, por vezes, à mistura com um pouco de café de chaleira; nutritivo aconchego estomacal.
Para além das leiteiras do porta-a-porta existiam também uns pequenos postos de recolha por onde passava a horas certas uma camioneta que recolhia o produto depositado pelos agricultores, leite que muitas vezes era o mealheiro e cofre, cujo retorno financeiro, por vezes, ia direitinho para o grémio da lavoura para pagar adubos. Isto era assim, ontem.
Hoje tudo é diferente. Por amor ao progresso e à modernidade já não existem terras amanhadas – antes pelo contrário, tudo em pousio, uma lástima - hoje já não existem leiteiras de porta-a-porta, hoje já não existe o posto leiteiro na aldeia, nem a passagem da camioneta. Hoje nem vacas existem - nem as de trabalho, nem leiteiras - que duas vezes ao dia levavam uns apertões de amonjo – ah, e ainda havia o tempo de vacatura – vaca que se prezasse ainda dava uma vez ao ano um bezerrinho, ao qual não havia garoto que não gostasse de dar uns abraços e beijos, até. E, quando já mais crescidos – os bezerros - eram provocados com cenas de toureio, e, às vezes, saia mesmo marrada. Por fim, alguns lavradores, os mais abastados, ainda davam, estocada certeira por entre cornos fazendo cair a rês redondinha, desconjuntada, no chão e daí vinham suculentos nacos de carne que para além de um dia de festa dava farto governo familiar.
Entretanto mudaram os tempos. Vieram novas políticas e novos políticos e políticos novos e novas teorias económicas, novos conceitos de gestão e aforro. E veio, o “é mais fácil ir ao supermercado”, é mais barato, é melhor, é mais saudável e tudo o mais que sobre a matéria se queira dizer, só não temos o mais importante; as vacas. E, não obstante ser tudo melhor, não há o essencial; o leite! E, o que há é caro – e as terras continuam em pousio - e ainda o vai ser muito mais caro, ou seja, como dizem as regras da economia, quando a procura supera a oferta, o produto sobe de preço. Mas a chatice é que também não há dinheiro.
Mas há políticos eruditos, até há um espaço económico europeu que regula tudo – e regula quem pode e não pode criar animais de leite, isto para bem de todos, quais “feitores” de promessas. Mas, o prometer é tão leve que nem alma tem. E, por tudo isso, há quem nem pinga de leite tenha; há fome. E, para concluir diríamos que; foram-se as vacas, as pequenas e as grandes, foram-se os agricultores, os pequenos e os grandes e vieram uns, seja perdoado o vernaculismo, vieram uns vacões. A teta secou, e para eles, para esses eruditos, também vai secar; pela certa!
Leiria, 2008.01.29