Naquele tempo não havia ASAE - sem embargo da importância que aquele órgão de polícia tem no controlo das actividades alimentares industrializadas - naquele tempo, dizia, havia muita economia caseira que para além do não impacto nas importações, animava seculares tradições; aproximava famílias, amigos, pessoas com créditos de favor – as tornas! -, colegas e vizinhos.
A matança do porco era uma dessas actividades económicas caseiras, com condimento maior numa jornada de confraternização, impar. O ciclo começava com a engorda; couves do quintal, aproveitamento da pele de batata, sêmeas da peneira, saramagos, sobras de comida, etc. Que carne gostosa! Qual mealheiro familiar a abrir nos meses frios.
Começava a cheirar a festa com a apanha da carqueja para chamusca do animal; até o mato silvestre era elemento de matéria-prima. O picador (o matador) chegava ao romper da aurora e dejejuava-se com um mata-bicho; figos, passas, aguardente, vinho branco, broa de milho, lascas de presunto; iguarias caseiras que nunca mataram ninguém. Qual frigorifico! Salgadeira, fumeiro e panelas de manteiga – para a recolha do torresmo - eram as técnicas de conserva.
A garotada estava sempre prontos a participar nas tarefas do amanho do mama-e-ronca. Na tarefa, havia sempre alguém a dizer “o rapaz, põe aqui água morna nesta orelha, não vês?” Invariavelmente saia "selapismo" na dita, saltando daí erupção para a cara do servente, a ficar sem fôlego. Rebentava em redor forte gargalhada.
Enquanto isso, à lareira da casa de fora, as mulheres faziam fogueira à panela das águas quentes. Ao mesmo tempo preparavam o almoço, quase sempre couve penca, batatas, bacalhau de posta grossa, azeite já a ficar em pasta; pelos rigores da invernia. E tinto retinto. Da loja (do comércio) só vinha o fiel amigo, tudo o mais era produção familiar.
Para que a tradição não se perdesse, no parecer do meu avô materno – sempre dizia “quando isto acabar, há muita gente a arreganhar a taxa com fome” - e, de algum modo também o meu tio paterno Zé Paula, sempre fizeram questão que aprendesse a arte. Nada de difícil. Aprendia-se praticando. Aprendia-se desmanchando.
Ainda recordo a primeira vez que piquei. O suíno quase nem ganiu, estocada certeira. Pela prática, pela tradição aprendi mesmo como lidar com porcos. Porém, hoje a tradição já não é que foi. Morreu.
Hoje falta e sente-se a falta do mealheiro. Porém, porcos continuam a existir, daí que se, se tiver de voltar às lides, ainda não as esqueci. O que se aprende nunca se esquece, e por isso continuo a saber como lidar com porcos, mesmo que feios e mauzinhos.
Leiria, 2010.06.30