A porta principal estava sempre fechada à chave; quase a enferrujar. Só era aberta, pela visita pascal, ou quando muito quando havia visita muito importante. A porta de serviço era a do pátio. Ao sair de casa eram feitas, as habituais recomendações, “o último a sair; deixe a porta entregue (ver se ficava fechada)”.
Essa, a de serviço, e as do pátio; a adega, o palheiro, os currais do gado, tinham de ficar também entregues, com a “tramela”. Mas, o que era a tramela? Era um pequeno zingarelho feito de madeira (um pequeno braço) agarrado à porta, atraves de um prego conjuntamente com uma moeda antiga (dita de pataco. E, sabe se lá, quanto valor não teria hoje na numismática) a fazer de anilha.
Rodado o zingarelho este tinha de bater dentro de um encaixe aberto num outro pequeno pedaço de madeira e pelo efeito do encaixe tinha de dar uma batidela “treque”. Sem o característico treque a porta não estava entregue. Que ilusão de segurança, Santo Deus! Quem quer que viesse rodava o zingarelho e pronto, a porta ficava às escâncaras.
A que propósito vem agora à discussão a tramela e a ilusão de segurança que dava?
As tramelas não fechavam coisa nenhuma. E, ao abrir, o treque só fazia anunciar alguém que havia aberto a porta. Mas, o curioso, agora se dá conta, é que ninguém ousava roubar nada a ninguém, a vizinhança era gente de porte – saber-se que o vizinho tinha surripiado umas coisas do celeiro do outro, era uma vergonha. Agora outro galo canta. – E, os de fora, os passantes, não se afoitavam a levar troco pelas pernas.
Daquele tempo, aos nossos olhos retemos as engenhosas tramelas. Mas aos ouvidos, parece que ainda estamos a ouvir a tramela. Daí que, quando alguém fala muito, fala demais ou insiste em sobrepor a voz à dos outros, sempre nos vem à cabeça onomatopeico som, da tramela. Daí que ainda hoje se diz, cala-me essa tramela!
A nosso ver o pior mal que temos no país são os trameleiros; falam, falam e não dizendo nada, sobrepõem a voz e opinião à dos outros. Enfim! Quem tem opinião diz que aquela que é a sua, mas todos têm a sua, ninguém se entende, dizem que é um direito trazido pela democracia. E talvez seja, só não conseguimos ver o que é que tanta conversa, tantos trameleiros, trazem de valor acrescentado ao país.
É certo que, quem não quer ouvir afasta-se. Mas o problema nem passa por aí, o problema está no constante comentar, quiçá até exacerbar de notícia. E logo saltam os trameleiros, qual abutre de palreio, que tudo dizem mas nada fazem. Enquanto isto as portas do país estão às escâncaras. E, tudo vai acontecendo; uns roubam, outros vêm e fazem que não vêm, outros subornam. Enfim, o país caiu num lamaçal que urge sustar.
Com efeito, se nos for dado opinar também, diremos: investigue-se, julgue-se, prenda-se, retirem-se funções, deportem-nos para as profundezas dos ermos; ponham-nos a pão e água. Mas usem a descrição, celeridade, apliquem-se exemplares penas. E por fim e dêem-lhe publicidade. Até aí, os trameleiros que, em vez de retórica, dêem contributos; deixem-se de fazer a cabeça desse povo humilde, que já nem de tramela precisa, porque roubados de todo, já estão.
Leiria, 2009-11-25